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22 de julho de 2006

RETRATOS DO BRASIL

CORAÇÃO SEQUESTRADO*
por Mylton Severiano

A gente acha sem procurar. No começo de 2006, fato peculiar muda os rumos de Chris R. (já saberá por que não dou sobrenomes nesta história). Porto-alegrense, cabeça feita no Rio, se diz guerreira, e é. Mãe solteira, filho de 4 anos, batalha às vezes doze horas seguidas como produtora de agência de imagens em Floripa. Mulheraço.


Celular toca. Voz de homem, educada e firme. Pergunta se há na família um Fiat assim e assado. “Sim, é do meu pai.” “Pois a gente tá com teu pai aqui”, diz a voz. Do susto, Chris passou à revolta. De gaúcho traz a faca na bota e, de carioca, a levada “schperta” e despachada. Despejou que o pai mora no Rio e ela, a 1.100 quilômetros de distância; que mata um leão por dia; que é mãe solteira etc. Veio outra voz, ameaçadora: 10.000 na conta tal do banco tal ou... O da voz nervosa levou um monte de impropérios, e mais, “façam o que quiserem, que nem me dou com meu pai, malandro!”, e Chris desligou na lata do nervosinho.


Com dez minutos, liga a primeira voz, pede desculpa, amacia, que era trote, que tinha gostado da valentia. Puxa conversa. Se abre. André, que ela passaria a chamar Arcanjo Miguel. Nasceu na Baixada Fluminense, cresceu no morro Dona Marta. Pai pedreiro, mãe doméstica, educaram os filhos na religião. Vida miserável. Aos 12, primeiros furtos.


Liga dois dias depois, brinca: “Aê, princesa, quer ser a primeira-dama do crime?” Algo atrai Chris nesse rapaz. Ela pede, ele se descreve: negro, 1m80, gosta de ler, desenhar, escrever poesia, tem letra em música gravada por um conjunto. Ela iria ao Rio naqueles dias e combinam encontro. Lá, liga para um número que ele passou. Não dá mais para André esconder. Aos 26 anos, está preso há quatro: assalto a banco. Mora numa cela de 60 metros quadrados com meia centena de colegas. Pois ela passa a humilhação da revista íntima e o visita. “Eu queria ver, sentir o cheiro...” Chris me conta tudo de um jorro, mais de duas horas falando desse amor, “só pode ser uma brincadeira de Deus”. A cada passo:


“Que será de minha vida?”


Apaixonam-se de vez na visitação. Beijam-se. Choram abraçados. Ela conhece o Nervosinho, o apelido é mesmo este, agora humilde, cabeça baixa, a pedir desculpas.


Em agosto, o “arcanjo” pode sair em liberdade provisória. E Chris sonha voltar para o Rio. Ele desenha bem, diz ela como a pedir conselho, “quem sabe faça curso de desenho, ou trabalhe comigo”; digo-lhe que vá fundo.


Anoitece. O celular. É ele. Falam longamente. Vêm trocando cartas semanais. Ele: “Se alguém tem um pouco de dignidade e amor no coração, quando entra aqui perde tudo”. Que a vida se divide em antes e depois de Chris. Ela: “Te cuida... gosto de você... coisas da vida... talvez eu tenha atendido o telefone na hora errada... não sei o que pensar.” “Medo de mim?” “Não. Apesar de tudo... seus sentimentos fazem com que a vida realmente tenha algum valor.”

André seqüestrou foi o coração da guerreira. Lá vai ela para a noite gelada, o pequeno no colo, tomar o ônibus. Deixo-a no ponto. Ela me abraça:

“Que será de minha vida?”

Esta novela vou acompanhar, que não está na tevê.

*texto publicado originalmente na revista Caros Amigos.

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